Dedico este relato a todos que sofrem de dores provenientes de doenças quaisquer, reconhecidas ou não.
Também àqueles médicos que ainda não tiveram a coragem e a responsabilidade de se atualizar e aprender a entender o paciente como um ser tão humano quanto ele e tão pouco, por em prática o juramento de Hipócrates.
Aos precursores e valentes médicos também, que tiveram visão suficiente para não se tornarem mais uma opção de mercado, mas verdadeiros orientadores que conseguiram enxergar para além dos fatores biológicos, tais como as influências psicológicas, o ambiente familiar, o social, o fator econômico e principalmente o ambiente de trabalho (onde passamos 70% de nossas vidas). Deles surgem provas irrefutáveis das origens de muitas das doenças que afligem o ser humano imerso nos grandes centros urbanos. A quem pode ver neste relato a si mesmo na luta pela aceitação de sua condição de doença, que ele possa ver que há muitos nesta mesma condição e que aceitar, calar e se submeter aos estados de depressão não será uma saída para a reconstrução de sua vida. Ter limitações físicas que se impõem, não impede que vivamos bem e tenhamos uma vida saudável e produtiva dentro dessas mesmas limitações.
Referências importantes
- Minha família esteve sempre comigo em todas as horas, com carinho, amor, compreensão e até mesmo com críticas para que a dor não me vencesse e sim para que eu acreditasse em mim e restabelecesse meu equilíbrio. Não teria enfrentado tudo se não fossem eles, talvez estivesse mais amargurada e me achando uma inválida.
- Minhas filhas adolescentes me auxiliam em todas as tarefas diárias, não teria conseguido sem elas.
- Felizmente fui bem assistida por uma assistente social da empresa em que trabalhei, sempre prestativa, orientou e aconselhou a mim e minha família. Ainda bem que existem profissionais coerentes como ela.
- Desejo salientar que minha sogra passa por situação semelhante a minha, tendo operado ambos os pulsos sem efeito, chegou a passar quase um ano engessada dos dois braços, tem os movimentos reduzidos e pouca força nas mãos, conseguiu a sua aposentadoria por idade apesar de ter lutado muito tempo para que isso acontecesse.
- De fato, encontrei um (1) médico que me ajudou muito, foi esclarecedor e defendeu pelo menos uma idéia de tantas que ouvi sobre minha doença. Pude confiar em algo. Portanto, existem médicos interessados, que irão aturar a confusão do paciente, no mínimo, tratando o quadro psicológico como uma reação normal, tratando assim, mais do que partes do corpo, mas seres humanos.
- De alguma forma entendo que existem forças que não vemos, mas sentimos que existem. A fé sempre me ajudou.
- Conheci mais sobre mim mesma depois que descobri a doença, nunca antes!
Introdução
Não sabia, realmente, o que era dor antes de tudo acontecer, não imaginava sequer que eu era alguém estressada e que todos os meus conceitos sobre o que é viver em absoluta normalidade poderiam estar equivocados. Aos 30 anos, com uma vida agitada, mas comum, passei a estar privada de tudo o que fazia indo as raias da depressão. Adquiri 15 quilos, passei a conviver com gastos com exames, fisioterapias, acupuntura e remédios.
As visitas a médicos tornaram-se peregrinações por diversos consultórios, inclusive as terríveis perícias (exame periódico feito por órgão público responsável pelo seguro em acidentes de trabalho), e aprendi que tão difícil quanto a dor física é enfrentar a mudança de vida que ela nos obriga a ter, a dor de sentir-se frágil diante da dor e da máquina de fazer doentes a que somos submetidos desde que nascemos.
Acompanhada do desconhecimento de alguns médicos e, por incrível que possa parecer, do descaso, da incredulidade e da desconfiança, de alguns médicos, de colegas de trabalho, de assistentes sociais, percebi que não era só eu quem sofria dos males provenientes de uma vida mal organizada e que o estresse tinha vária faces, enquanto todos deveriam estar trabalhando na prevenção estavam ocupados em obedecer às regras para não serem punidos, o que eu vivia ninguém entendia e o que eu via não podia aceitar, o sistema não enxerga e não permite exceção, eu me tornara uma fatalidade, não havia volta.
Eis os rótulos da minha dor: Vagabundagem, Crise Psicológica, Toxoplasmose, Síndrome Miofacial, Problemas Neurológicos, Reumatismo, Esclerose Múltipla, Fibromialgia e LER/DORT (Lesão por Esforço Repetitivo e Doenças Osteomusculares Relacionadas ao Trabalho) este último o mais fácil de atribuir e o mais difícil de aceitar pelo desconhecimento e pela intransigência de nosso sistema trabalhista, muitos sofrem desse mal, mas não é interessante que ele seja reconhecido(...)
Encontrei pessoas com os mesmos problemas que eu, até piores, mas mal informadas e acreditando no falho sistema voltavam cabisbaixas para mais uma sessão de auto-superação em suas funções no ambiente de trabalho, na família e no social. Soube de casais que se separaram, de crises de depressão quase resolvidas pelo suicídio e uns que até hoje "trabalham" e se afastam desse periodicamente, mas não são liberados de suas funções ou porque não sabem que tem direitos ou porque estão sujeitos a sua sobrevivência. Como nossos empresários, médicos, políticos e outros indivíduos conscientes dessas falhas, detentores do poder sobre os trabalhadores podem fazer isso com aqueles que mais precisam deles?
Por isso tudo resolvi escrever, espero que ajude, elucide e conforte aqueles que passam pelo mesmo caminho que trilhei, para que não se sintam sós e desorientados, que não se sintam culpados, enfim que não acreditem na primeira conclusão e lutem pelo direito de terem uma vida saudável e assistida.
Procurei não citar nomes, pois este relato tem como objetivo único levar informação útil aos que dela necessitam, em nenhum momento quero culpar empresas, órgãos e pessoas. Entretanto serve para que eles, sem conhecimento suficiente e acreditando no sistema, ainda sacrificam muitos outros piores que eu, com menos instrução, menor poder aquisitivo e menos apoio familiar. Também serve para aqueles que sabem, mas ainda não tiveram coragem de mudar o que precisa ser mudado.
Antes de tudo começar, um breve histórico
Nasci no interior e através de concurso entrei numa empresa de economia mista no cargo de assistente administrativo, não era muito, mas através de dedicação e esforço pretendia chegar a algum lugar. Trabalhei por 6 anos em escritórios municipais e postos naquelas máquinas de datilografia, daquelas bem antigas, por vezes até 10 horas seguidas, inclusive levando a máquina e o serviço para casa. Arquivava pastas diversas em armários de metal (aquelas gavetas bem pesadas), catalogava e arrumava livros em biblioteca. Em 1996 fui eleita para o cargo de tesoureiro na associação da empresa em Porto Alegre.
Quase um ano depois assumi novamente o antigo cargo. Na capital atendia a 5 pessoas, eventualmente aqueles vindos do interior, digitava trabalhos diversos em microcomputador e lidava com o famoso arquivo de metal. Essa fase viria a ser a gota d'água.
Na época minhas adolescentes tinham 12 e 9 anos, morávamos próximo do trabalho e isso facilitava muito. Meu marido trabalhava com assessoria e consultoria em informática em empresa privada e como autônomo, sempre tivemos uma relação estável e muito dinâmica. Pratico vôlei desde os 15 anos, em 1997 jogávamos, eu e meu marido, até três partidas por semana, à noite, após o expediente. Com a mesma turma do esporte fazíamos acampamentos e caminhadas em trilhas no mato em pequenas viagens. As meninas freqüentavam os escoteiros, eventualmente participávamos da condução dos jovens e outras atividades. Envolvíamo-nos em passeios ciclísticos também. De resto nossa vida era completamente normal, lavava-se roupa na máquina, comprava-se pão na padaria da esquina e via-se muitos filmes. Tínhamos sempre o que fazer e muitos objetivos futuros.
Uma grande confusão
As primeiras dores começaram após dois anos de trabalho sem descanso, havia acúmulo de serviço e eu tentava me organizar para finalmente sair em férias. Dores de cabeça, ombros, coluna e braços. Com o auxílio de meu marido, assessorando na época a empresa em que eu trabalhava, fizemos diversas mudanças no ambiente físico de trabalho, tais como trocar a cadeira para melhorar a postura, criar apoio para os pés, iluminação, etc , era tarde demais.
Após visita a médico ortopedista e traumatologista foi diagnosticado má postura em ambiente de trabalho e estafa, usei tipóia e colar cervical passei quinze dias de molho mais medicações leves. Neste momento fui encaminhada para o órgão competente como acidente de trabalho. Obtinha aí o meu primeiro diagnóstico. Não imaginava na época que nunca mais retornaria.
Fiz inúmeras sessões de fisioterapia (nunca consegui ir até o fim), infiltração de xilocaína, acupuntura, massagens diversas, exercícios em casa (quando conseguia), aplicação de bolsa de água quente e caminhadas.
Começava o caos. Em pouco tempo já não podia pentear o cabelo, lavar a louça, roupa, limpar a casa, bater bolo ou mesmo carregar uma bolsa feminina. Tentei, insistentemente manter-me independente, quanto mais eu teimava, mais dores sentia. Achava ridículo tudo que estava acontecendo, não podia ser, como uma dor poderia ser tão mais poderosa que minha vontade, e o pior, tão contínua e por vezes imprevisível, algo não tão dolorido como um braço quebrado, mas tão chato como uma ardência constante que mal te deixa pensar. Quanto mais eu tentava surpreendê-la, mais me espantava, pois fatores como temperatura, umidade, ar condicionado, saídas de ônibus ou mesmo de carro prolongadas, época de tpm e menstruação, ficar sentada ou de pé durante muito tempo, idas a perícia ou a empresa, movimentos fortes eram suficientes para me nocautear. Num sábado, pela manhã, me virei na cama para dar um beijo de bom dia em meu marido, despertei para uma crise quase interminável de dias e dias de dor!
Descobri que as preocupações, tais como, financeiras, de expectativa com visitas ou mesmo uma pequena divergência de opinião familiar eram fatais.
Ainda não acreditava que aquilo estava acontecendo, achava mesmo que eu estava somatizando alguma coisa, mas que com o tempo isso ia passar. Sabia que algo devia ser feito, mas não sabia o que, tentava mudar sem mudar, ou seja, não sabia o porquê do problema, mas mesmo assim aceitava a opinião de um entendido (algo fora de mim) e seguia a cartilha da mudança, porém, lá no fundo, não acreditava que era verdade e dentro de mim o problema continua vivo e inalterado. Chamamos isso lá em casa de estar "bibu", uma mescla de birra com burrice.
Meu marido me obrigou a usar uma pochete e abdicar da bolsa, passei a dormir de barriga para cima o tempo todo, a posição papai-e-mamãe passou a ser a regra naquelas horas, minhas filhas começaram a assumir funções de lavar roupa, louça e faxinas. O grupo escoteiro do qual participávamos foi ficando de lado até ser abandonado por todos. Os jogos semanais de vôlei nem falar, tentei algumas vezes, era entrar na quadra ficar uns minutos e voltar para o banco. Ficava sentada olhando todos jogarem... eu realmente não compreendia tudo aquilo, tudo estava mudando velozmente.
Sentia-me meia mãe, meia esposa, meia mulher, meia tudo.
Numa dessas sessões de terapia fui aconselhada, cuidadosamente, pela médica a rever minha condição conjugal, estranhei mas considerei a idéia "daquela entendida", já não sabia aonde achar solução. De mansinho fui entrando no assunto em casa, logo partimos para a briga e após uns safanões vi que havia insegurança por toda parte dentro de mim, comecei a culpar tudo e todos. Após esta discussão fico feliz em dizer que as únicas discussões que tive depois disso foram aquelas críticas que me fizeram amadurecer o problema.
Foram 24 perícias pelo órgão competente, fui examinada apenas umas 4 vezes, atestados nem sempre foram solicitados ou mesmo lidos, ouvi o que não queria ouvir, não pude dizer o que queria, gritei quando não agüentei os desaforos: "Vai trabalhar que passa!", "Isso é psicológico, tu estás somatizando!", "Não posso fazer nada, tu não tens nenhuma atrofia!", "Ah, então tu não quiseste trabalhar". Numa dessas vezes fui acompanhada de meu marido, pois caso ouvisse novamente um desacato a esta cidadã muito trabalhadora e confusamente doente estávamos preparados para ir para o tapa! Um absurdo para nossa educação, mas não ia mais agüentar ser chamada de vagabunda sem nada poder fazer, apenas sendo submetida a vontade dos poderosos e ignorantes
Ao todo foram 31 médicos, diversas especialidades, algo em torno de 15 exames, só 4 confirmações de "ites", inflamações e contraturas musculares ditas severas, os outros opinavam atribuindo a mesma causa: "Não apareceu nada isso passa!". Lembro de uma Eletroneuromiografia (exame em que se faz inserção de agulhas que emitem pequenos choques em alguns pontos do corpo), estava acompanhada de meu marido. A cada movimento e inserção das agulhas eu entrava em prantos sob o olhar desconfiado e neutro do médico. Estava em uma crise das boas, foi angustiante para nós, não sabíamos se a dor era o pior a enfrentar ou a expressão de pouco caso por este reles ser humano que o médico fazia questão de mostrar.
Numa dessas consultas com fisioterapeuta e médico do órgão competente, após exame, fui aconselhada a movimentar mais os braços, pois havia chance de atrofia. Nessa época eu já estava me acostumando a dores constantes, não fortes, aturáveis, não havia outra forma mesmo, tive que aprender a suportar. Naquele dia eu estava relativamente bem, aturando, e vi naquelas palavras uma chance de reabilitação, me positivei e ao chegar em casa fui ajudar meu marido a lavar o carro. Ele não compreendeu, mas ao me ver alegre e positiva e respaldada por médicos, acreditou. Acreditei mais uma vez nos “entendidos".
Lá fui eu, numa felicidade idiota, achar que podia realmente começar a fazer algo de novo, participar da vida diária de meus familiares, e não me sentir uma inútil sempre sendo xingada e avisada de que não podia fazer isso ou aquilo, cuidado, olha a dor, blá, blá, blá... Eis um bom exemplo de como ficou meu estado emocional nos 5 anos que passei por todo este processo, deixei de crer em mim, duvidei de meus familiares, não consegui mais acreditar em médicos, tinha medo de falar o que eu tinha, nem eu sabia (!) , não sorria muito, chorava bastante, meu humor era facilmente alterável, só queria dormir, e muitas vezes só podia dormir, pois os remédios eram um soco - as sensações com os efeitos dos remédios receitados como os antidepressivos, eram as piores.
Nem preciso dizer o que essa má orientação sem que eu peneirasse, questionasse sequer essa informação me custou. Hoje tenho medo, choro quando lembro, agradeço e penso nos que sofrem como eu. Como é difícil perder-se de si mesmo.
Paguei algo próximo dos R$ 2000,00 reais, fora o que o plano de saúde cobriu. Quando a conta chegou nessa cifra comecei a filtrar o monte de exames, fisioterapias e outros. Para nossa renda familiar, depois que meu marido passou a trabalhar menos como autônomo, isto era significativo, fora a quantidade de remédios em farmácias.
Eis o que já me foi receitado: antiinflamatórios diversos, infiltrações com xilocaína, katadolon, tramal, voltaren, paracetamol, nortriptilina, dorilax, dorico, trofanil, amplictil, tegretol, tilatil, valium, sensitran (morfina), sirdalud, rivotril, setux, aas, celebra, vioxx e outros. Na época, utilizava o paracetamol, setux, rivotril e a nortriptilina manipulada para controle de dosagem, pois não me acostumei a doses muito altas, fico literalmente chapada e os médicos dizem que isso é impossível (!?). As dores jamais pararam, eu é que me acalmei (quando possível), aprendi a suportar a dor e principalmente a entender o significado da palavra disciplina, quanto mais a gente se debate, pior é, este ditado é uma verdade, porém acredito ser inevitável conviver com dor física, discriminação, falta de entendimento e orientação além de ter que mudar todos os hábitos de sua vida após 30 anos de vícios.
As características dessa dor, até agora, sugerem sintomas tais como, nódulos no pescoço, ombros e lombar, inchaço, fraqueza, tremor, dormência em ambos braços, antebraços e mão, perda da força principalmente do membro superior esquerdo ( sou destra! ) , sensações de dor e repuxamento da perna e região lombar e cervical, dores no peito, sensação de calor ou frio nas áreas atingidas, travamento dos movimentos em uma crise com contratura muscular severa, dores de cabeça seguidas. As dores mudam freqüentemente de lugar e intensidade.
Tarefas tais como, lavar e passar roupa, lavar e secar louça, faxinas, varrer, cortar carne, amassar massas para bolo ou pão, lavar e pentear o cabelo, dirigir, correr, jogar, levantar peso, ficar de pé ou sentada por muito tempo, enfim tudo que movimente ou force os braços e o pescoço em demasia, até mesmo caminhar! Não creia que não tentei fazer tudo isso muitas vezes, quando achava que estava boa e gostosa para manipular a dor acabava sofrendo de novo. Aí pensava, mas não posso falar para os médicos que tento ser normal, me perguntava: "E se alguém me ver com essa vassoura na mão o que eu vou dizer?", são conflitos que não consegui evitar, me sentia livre quando podia fazê-los e culpada quando fazia, depois confusa com a dor que eles me proporcionavam. Culpava-me por estar em casa, folgada, vendo TV, enquanto meus colegas e familiares trabalhavam, culpava-me porque achava que estava enganando os médicos e a mim mesma, pensava: "Quando ia terminar essa somatização?" ou "Como posso estar em casa, aparentemente livre de trabalho e descansada podendo dormir e fazer outras coisas que normalmente nos privamos, e ao mesmo tempo continuar a sentir dor?". As aparentes férias que eu gozava tornavam-se sempre um inferno cheio de surpresas. Era melhor esse inferno em casa do que na roda viva do dia-a-dia.
Não consegui sair disso por muito tempo, e só muito depois percebi, e ainda estou aprendendo, que não era o que eu devia fazer, mas como, a cabeça deveria estar disciplinada, não despreocupada, mas sensata, menos energética e mais estável, não podia apenas fazer como antes, devia fazer o que podia, se não desse de uma forma poderia fazer de outra, se não desse era só não insistir e muito menos se culpar ou ficar no estado de "bibu" - birra e burra. Ainda assim a dor aparece e me deixa sempre muito confusa.
Passei por Ortopedistas, Traumatologistas, Reumatologistas, Neurologistas, Cardiologista, Psiquiatra, Anestesiologista e Especialista em dor crônica, Fisioterapeutas, Acupunturistas e Medicina do Trabalho. Mesmo que nessa lista haja redundância, para um leigo é suficiente para que ele se ache um caso especial. Quase todos os médicos diziam mais ou menos o seguinte, "- como não conheço o teu caso vou pedir exames e estudando isto poderei te dizer algo", não obstante que cada um tenha seus métodos de trabalho, suas especificações própria da área de atuação, como é possível que um paciente fique pipocando de um consultório a outro e com facilidade após bateria de exames lhe dêem expectativas e por fim digam que: "Lavo minhas mãos, do ponto de vista tal tu não tens nada".
Hoje sabendo que meu caso é comum e assola muitos trabalhadores, que depende do organismo de cada um, das condições sócio-econômicas, que a prevenção é quase inexistente, que a doença nem é aceita, como ninguém me avisou? Quer dizer que a classe médica "desconhece" uma doença tão comum quanto a gripe? Quando era ventilada a hipótese de que eu possuía uma doença do trabalho, a minha ignorância achava que LER era doença de digitador, logo diziam que não era possível estar encostada e continuar a sentir dor, era só trocar de função, tomar uns antiinflamatórios e tudo bem.
Sou considerada uma portadora de LER/DORT com diagnóstico de Síndrome Impacto Ombros + Epicondilite medial D e E e Tendinite de Antebraços (pronadores) 2 lados com incapacidade para elevação e perda de força em MMSSs, principalmente à E. Bonito diagnóstico de palavras reservadas, não é? Entendo no geral o que diz, mas certamente sempre aparecerá alguém para dizer que não é isso e é aquilo. Para mim não importa muito, tenho dores diversas, nunca consegui contê-las e isso modificou a minha vida e de meus familiares e até que tudo isso tivesse terminado - não a dor, pois essa é crônica, mas as eternas visitas a consultórios, perícias, empresa e a dúvida sobre o que eu tenho - nunca descansei.
Neste momento, defronte ao microcomputador junto ao meu marido que está escrevendo estas páginas, sinto dores, mesmo estando medicada e tranqüila, pois revivemos cada momento. - Sinto vontade de chorar, diz ele.
Tomava conta de mim, a esta altura, além de tudo isso, o medo de voltar ao trabalho. Conhecendo a minha empresa, saberia que ao voltar a readaptação poderia ser traumática, se nem nas tensões diárias no lar não conseguia me livrar da dor e a cada forte emoção entrava em uma nova crise, como poderia voltar para o corre-corre do dia-a-dia. Além do mais me fora dito que se eu voltasse certamente, após um ano de trabalho, seria demitida! A cada perícia a agonia de algum médico simplesmente dar a alta sem me examinar ou ler os atestados, era grande. Aprendi a estar munida de documentação a toda hora, montei uma pasta com histórico de tudo o que fiz, nunca entreguei um original. Evitava tomar os remédios fortes - aqueles para depressão - , pois "chapada" não saberia responder a altura ao já esperado áspero atendimento na perícia.
Em 1999, aconselhada por alguns médicos, e já mais consciente e acostumada com a rotina da dor, resolvemos mudar de vez. Refiro-me a sair do bairro central onde morava, próximo a um parque, bem localizada, com acesso à escola, trabalho, lazer e diversas comodidades. Vendemos um carro muito confortável e junto com economias compramos um pequeno sítio nas proximidades da capital e um carro barato. Muito verde, ar puro, sem o estresse das ruas, do aluguel, do trânsito de pessoas e carros, bom para caminhadas tranqüilas, longe de tudo, mas próximo a um colégio municipal.
Meu marido deixou o emprego em empresa privada, passou a trabalhar mais como autônomo, não preciso dizer que o rendimento familiar baixou mais uma vez. Reforçamos em casa as aulas para as meninas, pois o colégio era fraco, e começamos, eu como uma administradora e observadora na maioria das vezes, a construir horta, lavoura, criar galinhas, cabra de leite, cães da raça fila, usar água de poço, sair só quando necessário, de preferência uma vez ao mês. Faço questão de dizer que nada disso seria possível sem minhas filhas, elas tiveram que aprender rapidamente as lidas de um sítio, acostumadas a cidade, no início foi difícil, mas tudo deu certo, agradeço este privilégio em tê-las como filhas. Era o complemento que eu e meu marido precisávamos nesta luta.
Buscando agora um equilíbrio no ambiente físico, na natureza e no isolamento melhorou muito, porém fui obrigada a abandonar sessões de acupuntura e fisioterapia, pois o acesso e a distância exigiam longas viagens de carro ou ônibus por estradas acidentadas, e eu não agüentei. Saia somente para as idas aos médicos e perícias.
Eis uma semana para nunca mais esquecer...
Era um dia 17 de janeiro de 2001. Na última perícia fui encaminhada ao Centro de Reabilitação, lá passei por médico, fisioterapeuta e assistente social, mesmo através de protestos meus, da assistente social e da médica da empresa em que eu trabalhava, fomos obrigadas a engolir uma tentativa de reabilitação. Segundo a linguagem usada nos telefonemas que eu mesma assisti entre a empresa e a assistência social do órgão responsável, eles deveriam arranjar um lugar para mim de qualquer jeito, nem que fosse para ficar sentada junto a gerente de recursos humanos! Pois, não só não havia função como eu não me encontrava recuperada. Parecia mais uma briga para ver quem se livrava de mim do que uma nova adaptação, uma obrigação legal, ninguém no Centro de Reabilitação perguntava se eu tinha condições, mesmo que eu gritasse, não queriam ouvir.
Trabalhei por 8 anos de maneira eficiente e dedicada, sempre na mesma área, me tocaram goela a baixo uma readaptação na função de recepcionista, não me deram escolha. Apressaram a saída em férias de uma recepcionista e me colocaram ao lado dela em treinamento, de pé, em frente a um telefone, uma caneta e um livro de registro na recepção da porta principal da empresa por onde passam centenas de pessoas por dia, usava tipóia e colar cervical, senti-me numa vitrina explicando a todos por que estava toda paramentada e trabalhando, fora a expressão de dor difícil de esconder, ninguém entendia. A empresa começava a temer um processo.
Durei uma tarde. O quadro era completamente as avessas de tudo que me fora aconselhado até ali, havia 3 anos que estava parada, a tensão era enorme. Na manhã seguinte peguei 2 ônibus, numa viagem de 2 horas, não havia dormido na noite anterior, pois as dores não deixaram, estava abalada e nervosa. Ao chegar procurei imediatamente a médica do trabalho, não estava. Fui atendida e medicada pela própria assistente social, fiquei aguardando em uma maca. Em seguida o quadro piorou, em um carro da própria empresa fui levada a um pronto atendimento traumatológico, eu não conseguia movimentar os membros superiores e o tronco, mal andava. Ao voltar para a empresa, sentia-me um trapo, o diagnóstico era de contratura muscular severa na coluna cervical com recomendações de repouso e cuidados extremos a fim de não provocar algo mais grave, tudo registrado em atestado.
Mesmo combalida, resolvi envolver o sindicato e associação, até aqui ainda não havia tomado providências deste tipo, pensei até em entrar na justiça contra quem quer que fosse, mas não ia aceitar ser manipulada tão injustamente. Liguei de um orelhão e recebi instruções de um advogado que aguardasse a médica do trabalho. Após sua chegada fui dispensada com documentação apropriada para retorno ao Centro de Reabilitação (CR). Antes disso fui acompanhada da assistente social ao psiquiatra que me tratou por uns tempos. Após 2 horas de consulta ante representação legal da empresa atestamos a impossibilidade de retorno as atividades.
Achei que estava tudo terminado, pelo menos aquele retorno embaraçoso, não podiam me mandar de volta. Porém o inesperado ainda estava para acontecer.
Eu e meu marido fomos ao CR, eu não estava em condições, meu estado emocional acelerava o processo de dor, tomei comprimidos fortes e me muni de acompanhamento. Qual foi nossa surpresa quando a assistente social, simplesmente disse que não ia nos atender, isso ainda no corredor, pois o médico estava de férias e eu deveria aguardar. Sem discutir ligamos para a empresa e fomos instruídos para ali ficar e insistir, a médica do trabalho ligaria para o responsável.
Em seguida encontramos novamente a assistente social, mais uma vez no corredor, pois nossa chamada foi deliberadamente esquecida, meu marido não se apresentou, mas ao questionar da possibilidade ilegal daquela ação, foi rispidamente tratado. Evitamos discussões desnecessárias e nos dirigimos imediatamente a diretoria daquele órgão. Naquele instante a assistente mudou drasticamente de idéia e disse que poderia atendê-la caso tivesse atestado, coisa que não deixamos de mencionar.
Não permitiu que ambos entrássemos na sala. Ele se encaminhou a diretoria enquanto eu era atendida, pois tinha direito a nova perícia. Logo foi recebido, informando sobre o caso e desconhecendo aquele procedimento, pedia instruções aos superiores daquela funcionária.
Após breve atendimento, fui liberada normalmente pelo CR. As pressas a funcionária me liberou e dirigiu-se rapidamente, logo a minha frente, à sala da diretoria para acompanhar a conversa. Parecia uma novela. Em tom explicativo, em meio aos gritos da assistente, a diretora tentava justificar que estávamos corretos e que tudo não passava de um mal entendido. Não sabia se ria ou chorava.
Estávamos munidos de orientação legal pelo sindicato, pela empresa, possuíamos atestados da médica do trabalho, do psiquiatra e médico forense e do pronto atendimento traumatológico. Nada foi lido ou utilizado neste bafafá burocrático e insano, nunca havia passado por isso. Tinha idéia de que o nosso sistema de saúde era insatisfatório e pobre, mas não sabia que a manipulação atingia a ética dos profissionais que ali trabalham, graduados e condenados a um sistema caduco. Levamos muito tempo para esquecer este infeliz incidente, ficou uma pergunta. Como pessoas comuns, sem instrução, acesso a informação que só conhecem a manipulada comunicação de massa, podem, e são a maioria, depender desse fraco, injusto, manipulativo e inalterado poder?
Se por um acaso, uma pequena insistência, o que eu pensava que ia ser uma verdadeira batalha, conseguimos a justa e devida liberação a qual eu tinha direito, apenas com um bater na porta de um diretor, evitando assim uma infrutífera discussão ou até mesmo tribunais, achando que era impossível apenas um "Não vou te atender" ser a razão da interrupção de um processo que sofro há tanto tempo. Como ficam os outros que sem enxergar a verdade, sem saber, pessoas de idade avançada, humildes, confiantes no sistema, com problemas piores que os meus, sem assistência médica privada, ficam presos nessa malha injusta? Perpetuam seu estado alterado de saúde até a sua morte. A vida dessas pessoas muda conforme o "tapa" que elas levam, caladas e sem reação, e eu mudo e aceito a difícil mudança em minha vida apoiada por tudo que eles não tem (!).
Depois desse infeliz e traumático incidente, muita coisa mudou. Foi como se as dificuldades que eu já vinha enfrentando tivessem se multiplicado, foi um marco nesses 9 anos de convívio com a dor. Foi o supra-sumo das ocorrências, uma espécie de conflito geral envolvendo todos as personagens dessa novela num confronto decisivo em que eu viria a conhecer uma profunda depressão.
Nunca soube o que era realmente uma depressão, tomava antidepressivos porquê eles auxiliam no tratamento da dor em si e porquê o paciente de dor crônica entra em depressão com facilidade pela continuidade da dor. Hoje sei que muitas vezes fui inconsciente dos acontecimentos, achava que tinha controle, mas 'achava' demais...não tinha certeza de nada.
Comecei a confundir tudo, chorava por qualquer coisa, não conseguia mais conduzir ou mesmo me preocupar com minhas filhas, perdi o desejo sexual, passava o tempo todo deitada com tipóia e colar cervical, as dores pareciam mais doídas e intermináveis, cheguei a passar 2 semanas com dor intensa, não conseguia pensar, lutava contra os remédios, mas não podia abdicar deles, por fim passei a pensar em morrer e que assim seria melhor para todos, pois não via mais solução, nada fazia efeito, não me acalmava... que novela hein? Achei que nunca ia ser protagonista de coisas assim.
Conversava uma manhã inteira com meu marido, ele já não saia de casa com freqüência, eu não chegava a nenhuma conclusão, mas as "conversas-mijadas" seguidas me fariam pensar, nós não éramos os "entendidos", mas viríamos a descobrir que éramos os verdadeiros entendidos.
Imagino que as pessoas que passam por problemas contundentes, se encontrem desencontradas, que cada um tem um jeito de reagir, buscar respostas para si. O que quero ressaltar de modo lúcido é que perdi a lucidez, a segurança adquirida após muitas vivências, a autoconfiança. Chamo isso que vivi de uma novela, dramática e cheia de confusões emocionais, uma gangorra de incertezas, uma loucura. Intelectualmente fácil de resolver como muitos problemas-surpresa do dia-a-dia, como a morte de um ente querido, por exemplo. Com frieza e sensatez tentamos achar o 'norte', o 'x' do problema, estabelecer um plano e pôr em prática a tentativa de solução.
É, e foi difícil, espero não ser redundante e muito tendenciosa, mas foi assim, assustador, talvez para mim, para outros, uma doença qualquer, uma dorzinha, uma aposentadoria por invalidez para ficar em casa engordando aos 36 anos de idade. Espero que não aconteça com ninguém, mas sei que muitos passam diariamente por isso, perde-se o chão em que se pisa, é uma mudança radical e imposta. Agora entendo o ditado: “Prevenir é o melhor remédio”. Agora entendo o ditado: “Nosso país não é sério”.
Preocupo-me muito com aqueles que podem acabar vivendo a mesma coisa, e que perdidos se comprometem, por isso traduzo exatamente o que passei, para que muitos não se sintam tão estranhos como eu me senti.
Não vivi um teatro, vivi uma realidade social, não tão feia quanto aquela das ruas, mas tão destruidora que pode mudar a normalidade de uma vida. Normal para muitos que nem sequer lutam, aceitam o rótulo de um funcionariozinho, de um médico antiético, de um cara de balcão que cansa de atender o povão que não tem plano médico, aceitam o desconto no contracheque e quando tu mais precisa não podes contar com o teu direito legal.
Hoje
Convivo diariamente com a dor, mas já me sinto forte para discipliná-la, pois ela é minha, pertence ao que sou, não posso arrancá-la, mas posso aceitá-la. Não a vejo como uma inimiga, mas como uma amiga a qual tenho que gostar e conviver. Não mudamos da noite para o dia, mas transformamo-nos a medida em que entendemos o que nos acontece, é um processo íntimo de aprendizado, pois a doença instalada não é tão somente tratada pelos médicos (seres humanos como nós), é principalmente entendida na vivência e na prática. Os remédios ajudam, os limites são muitos, nem sempre faço o que quero fazer, nem sempre consigo fugir do que tenho de fazer, continuo viva e com obrigações de mãe, esposa e companheira de minha família.
Hoje vivo melhor, estou aposentada faz 5 anos depois de muita batalha, busco na justiça os seguros que paguei enquanto funcionária mas na hora em que precisei me foi negado sob muitas alegações. Tive de fazer mais perícias, recebi até 7% de incapacitação, 25% para outro, ninguém se entende, pois o único objetivo é não pagar.
Minhas filhas ainda me ajudam e são universitárias, moramos ao lado do campus, meu marido ainda trabalha como autônomo e só assim posso contar com eles. E a eles dedico minha sobriedade diante de minhas dores, sinto-me útil diante deles, mesmo sendo inútil muitas vezes. Que bom se toda sociedade pudesse compreender melhor seus semelhantes e que a diferença (doença, pobreza, raça, credo...) não excluísse a humanidade em cada um de nós.